A IMPERATIVA E INADIÁVEL QUESTÃO DEMOGRÁFICA
MAE - Movimento Acção Ética
29 de Junho de 2021
1. Entre défices de toda a ordem, pouco se fala do que será o maior défice que germina lenta e inexoravelmente: o défice de nascimentos.
É certo que, de vez em quando, este assunto é noticiado, embora em fugazes notícias, logo trucidadas por uma qualquer evanescência do dia. Os governos e alguns partidos têm apresentado propostas quanto à natalidade (quase sempre esquecidas no “dia seguinte”), tem-se vindo a falar mais do rápido envelhecimento da nossa população e do seu impacto nos sistemas de saúde e de segurança social, e têm vindo a ser conhecidas projecções que antevêem sérios desafios no futuro já ao virar da esquina, sem que isso provoque qualquer sobressalto público.
O problema tem sido agravado pela crise pandémica. No nosso país e nos primeiros três meses de 2021, nasceram menos 2898 bebés do que em igual período de 2020 (menos 13,7%!), por sua vez, já pior do que em 2019.
É verdade que não estamos sós. De facto, trata-se de um problema que, com maior ou menor intensidade, se acentua no mundo, e particularmente na Europa. No entanto, Portugal ocupa uma das piores posições. Há dias, o Papa Francisco exortou os países a considerarem a promoção da natalidade como uma das alavancas fundamentais para a recuperação pós-pandemia e alertou para não seguirmos “modelos de crescimento míopes, como se para nos preparamos para o amanhã fossem necessários apenas alguns ajustes apressados”.
2. Em breve síntese, apresentam-se a seguir alguns dados actualizados sobre a evolução demográfica em Portugal, comparados com os valores de há 50 anos (1970):
• Verifica-se um acentuado declínio do crescimento natural desde a década de 70 do século passado. Esta tendência é explicada, substancialmente, pela forte queda da natalidade. Assim, a taxa de fecundidade (número médio de crianças por mulher em idade fértil) atingiu, em 2019, o valor de 1,42 filhos/mulher (a média mundial é 2,47), contra 3 filhos em 1970;
• Há um retardamento do nascimento do primeiro filho, que, em 1970, era aos 24,4 anos de idade da mãe e, agora, é aos 30,5 anos (a média mundial é de 28,1 anos);
• Em 2020 nasceram em Portugal 84 426 bebés. Trata-se do número mais baixo desde 1935, ano a partir do qual há estatísticas oficiais sobre a matéria. Atingimos um valor que representa apenas cerca de 62% do necessário para se alcançar o ponto de equilíbrio geracional (no nosso caso, cerca de 2,1 filhos). Este défice anual equivale a uma cidade de 60 mil habitantes;
• Das crianças nascidas em 2020, 58% são nados-vivos fora do casamento (comparativamente com 7%, em 1970 e 22% em 2000);
• O impacto da queda de fecundidade tem sido atenuado, no entanto, pela notável diminuição da taxa de mortalidade infantil, de 55 por mil crianças até um ano de vida, em 1970, para 2,4 por mil, em 2020;
• A esperança média de vida à nascença (EMV) que, em 1970, era de 64 anos para o homem e de 70,3 anos para a mulher, é agora de 78,1 e 83,7 respectivamente para o homem e para a mulher, o que significa que, nos últimos 50 anos, o aumento (notável) da EMV foi de 3,4 meses por cada ano de calendário!
• A esperança média de vida aos 65 anos (EMV65) que era, em 1970, de 14,6 anos (mulheres) e 12,6 anos (homens), atingiu, em 2019, 21,1 anos (mulher) e 17,8 anos (homem);
• O índice de longevidade, ou seja, a percentagem de pessoas com 75 e mais anos por cada 100 pessoas com mais de 65, é agora de 48,4% contra 32,6% em 1970;
• O aumento da esperança média de vida implica que teremos um maior número de famílias em que 4 gerações estarão vivas ao mesmo tempo, o que significará, acentuadamente, que pessoas de 60 anos se ocupem dos seus progenitores de 80 e mais anos;
• A conjugação do declínio da natalidade e do aumento da esperança de vida tem vindo a provocar um maior grau de envelhecimento e um aumento da taxa de dependência dos idosos. Em 1970, havia em Portugal 34 pessoas com mais de 65 anos por cada 100 jovens com menos de 15 anos. Em 2020 atingiu-se o valor de 161 idosos por cada 100 menores e estima-se que, em 2070, se chegará a números de consequências difíceis de imaginar, bem superiores a 300 velhos por cada 100 jovens…
• A percentagem de famílias unipessoais mais do que duplicou entre os Censos de 1960 e de 2011. Em valores absolutos, passou de 253.848 para 866.827, constituindo 21,4% das famílias, quando há 50 anos eram 10,8%. Ao contrário, as famílias mais numerosas (com 6 ou mais pessoas, de diferentes gerações) diminuiu drasticamente de 17,1% para 2% do conjunto das famílias;
• A nuclearização da família tornou mais visível a debilidade com que a sociedade enfrenta o futuro dos mais velhos. Ultrapassámos o limiar de 500.000 pessoas idosas a viver sozinhas (são, em 2019, 513 mil). Para dar uma diferente ordem de grandeza, só neste século (2001-2019), por cada dia que passou, 25 pessoas com mais de 65 anos passaram a viver isoladas (em muitos casos com múltiplo isolamento: familiar, relacional, territorial, pobreza).
3. Perante esta realidade, assiste-se, com pusilanimidade, à promoção de políticas, directa ou capciosamente, anti-natalistas. Silenciosamente, a ameaça vai caminhando perigosamente. Para quem vier a seguir. Como é um problema para “depois de amanhã”, não abre telejornais, nem suscita reflexões mais profundas.
A nível mundial, mais explicitamente nuns casos ou mais subtil e indirectamente noutros, observa-se a existência de correntes ideológicas que quase colocam “no banco dos réus” a demografia, tendo subjacente uma abordagem neomalthusiana e defendendo que Estado deveria intervir activamente no controlo do crescimento da população.
A vida é o bem supremo, o maior de todos os bens e valores, constituindo um continuum desde a sua concepção até à morte. Desvalorizar qualquer dos seus momentos ou conformar-se com reduções estruturais da natalidade é pôr em causa o seu valor inalienável e intransferível. Relativizar a vida é aceitar uma métrica de pseudo tecnicalidade, baseada em mínimos éticos ou em subjectivismos axiológicos e rarefacção espiritual.
O aborto e a eutanásia são o alfa e o ómega desta cultura do relativismo do valor da vida, gerada pela convergência entre o hedonismo comportamental, o implícito desprezo pela vida nascente, a secundarização da família como fundamento e fonte de vida, a desconsideração da dignidade da velhice, um certo utilitarismo pós-malthusiano e o enfraquecimento do valor ético da responsabilidade. A maternidade foi desqualificada e emergiu uma mentalidade “anti-bebé”, fomentada por um individualismo que desvaloriza a família como célula essencial da sociedade. O bebé é, muitas vezes, considerado não como uma fonte inesgotável de alegria e felicidade, mas como um intruso incómodo que condiciona a liberdade de potenciais pais, que adoptam a atitude “defensiva” de atrasar o mais possível ou mesmo afastar a maternidade e a paternidade do seu projecto de vida.
Transformar problemas em soluções e males em direitos, configura a mais injusta e cobarde das discriminações: a da vontade de uma parte mais forte e impositiva sobre a mais débil, sem voz ou representação e sem ou com escassa protecção legal.
Na sociedade pós-moderna, esta abordagem vem sendo induzida, com um gélido calculismo, por uma linguagem de deslizamento semântico, que pretende anestesiar o sentido moral destas práticas. Assim se fala, biologicamente, de um feto e não, afectivamente, de um filho por nascer. Assim se fala, da mulher e não da mãe e se ignora, ou pior, se desresponsabiliza o pai. Assim se diluem as naturais distinções entre pai e mãe para se falar de progenitores “neutros”. Por outro lado, o que parece estar na “moda” não é falar do casamento, mas da sua dissolução. Não é defender a exigência, mas espraiar a lógica de um mero contrato que corre o risco de se tornar o mais fácil de romper. Não é investir na maturidade afectiva, mas estimular a precocidade sexual. Não é promover a responsabilidade, mas o facilitismo permissivo. Não é cuidar dos velhos quando a cura já não é possível, mas legislar sobre o direito à eutanásia. Não é proteger e promover a vida, mas deixar-se fascinar por certa biotecnologia desumanizada.
4. Perante este quadro torna-se necessário, agora e sempre, responder com a cultura da compreensão e do coração, com solidária sensibilidade para compreender e não para culpar. Ter compaixão por vítimas de circunstâncias dramáticas não é pactuar com o mal, mas transportar-nos para a dimensão do perdão. Um difícil, mas necessário repto para as pessoas de bem é o de conciliar a sua posição moral de não concordar com certas leis e, ao mesmo tempo, compreender as circunstâncias da pessoa e não a condenar.
Convém não esquecer que um país envelhecido, com poucas crianças, é um país enfraquecido e sem futuro. Talvez a melhor campanha que se poderá realizar para aumentar a natalidade seja a de valorizar a família enquanto instituição humana e pedra angular dos programas sociais do futuro e com futuro.
A dificuldade em conciliar a vida profissional com a familiar é um dos motivos invocados para levar os jovens a adiar cada vez mais a decisão de terem filhos, agravando a baixa natalidade. Esta é uma realidade incontornável que importa considerar, como prioritária, nas leis e práticas do país.
É igualmente necessário reflectir sobre políticas públicas que contrariem a acentuada redução da natalidade. Seja no plano da segurança social (licença de parentalidade, bonificação no acesso à pensão de velhice para os pais que têm mais filhos, entre outras medidas), seja no plano tributário (apoio fiscal às empresas que promovam equipamentos de apoio aos filhos menores em condições de proximidade adequadas, dedução de despesas associadas à guarda de crianças, etc.), seja no plano laboral. Nesta área, é necessário reforçar os apoios a projectos e iniciativas de formação e emprego no âmbito dos serviços de apoio à família, a programas específicos de requalificação profissional para as mães após a licença de maternidade ou a licença sem vencimento permitida por lei, assim como estabelecer incentivos legais e fiscais ao trabalho a tempo parcial e teletrabalho.
Na fotografia, os membros fundadores do MAE.
Créditos da Foto: Manuel Costa / Ecclesia