MOVIMENTO ACÇÃO ÉTICA
O MAE entende que não há remédios técnicos para males éticos.

Nulidade do Acórdão do Tribunal Constitucional sobre a eutanásia?

Paulo Otero

18 de Março de 2021 

1. O Tribunal Constitucional emitiu, em 15 de março, um juízo de inconstitucionalidade face à designada lei da eutanásia, mas apenas circunscrito a uma insuficiente densificação normativa, à luz do princípio da determinabilidade das leis, do conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, usado no decreto.

Por outras palavras: se o parlamento reformular o diploma, procedendo a uma concretização desse conceito, o Tribunal Constitucional entende que nada obsta a que a eutanásia possa ser instituída. Resta saber, todavia, como será possível traçar uma definição que respeite tais parâmetros, desde logo, alcançar “consenso científico” – a ideia de fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha seria, por certo, uma tarefa bem mais fácil para os Deputados.

Mas não é sobre isso que, neste momento, gostaria de refletir.

 

2. No seu acórdão, o Tribunal Constitucional entende, apesar de não lhe ter sido questionado, antes o Presidente da República afasta, expressamente, que fosse objeto de análise “a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição (…)”, que a autonomia pessoal, “em situações-limite de sofrimento”, legítima a decisão de cada um em escolher “como e quando termina a sua vida”, assim como envolve o reconhecimento da colaboração (voluntária) de terceiros a ajudar outrem a morrer. Trata-se, diz o Tribunal Constitucional, de uma opção que se funda “numa conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico. De acordo com tal conceção, o direito a vivernão pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”.

Deste modo, o Tribunal Constitucional pronuncia-se no sentido de que, em determinadas circunstâncias, a eutanásia é compatível com a Constituição.

 

3. Sucede, porém, que, situando-se este entendimento do Tribunal Constitucional claramente fora do pedido, tal como a declaração de voto que tem como primeira subscritora a Juíza-Conselheira Mariana Canotilho sublinha, observamos aqui que “o Tribunal escolheu ir muito mais longe”: “o Tribunal entendeu fazer uma análise prévia da constitucionalidade da eutanásia ou do auxílio ao suicídio, em si mesmos considerados” e, como refere essa declaração assinada por quatro juízes, “não devia, porque uma compreensão adequada das exigências dos princípios do pedido e da separação de poderes a isso mesmo conduz”, pois o Tribunal não é o “dono do pedido”.

 

4. Violando o princípio do pedido, a decisão do Tribunal Constitucional, na parte em que admite a compatibilidade da eutanásia com a Constituição, é nula – trata-se de um caso de nulidade que consubstancia um princípio geral de Direito, traduzido no aforismo romano, “si judex pronuntiat ultra petita, sententia est ipso jure nulla”.

 

5. Sendo nula essa parte do Acórdão nº 123/2021, nunca se consolidará na ordem jurídica e não vincula o Tribunal Constitucional em futuras decisões, nem quaisquer outros tribunais ou aplicadores do direito.

Além disso, os Juízes-Conselheiros que subscreveram essa declaração ficam autovinculados, sob pena de comportamento contraditório, típico de um venire contra factum proprium, a nunca fundamentarem a compatibilidade da eutanásia com a Constituição neste acórdão e, se um dia forem chamados a apreciar a nulidade desta decisão, em decidir nesse sentido.

 

6. Não tenho memória de uma declaração de voto de juízes-conselheiros do Tribunal Constitucional ser tão contundente na autodestruição jurídica de uma decisão do próprio Tribunal Constitucional. E é tão raro os defensores da eutanásia fazerem tanto pelos que, partidários da inviolabilidade da vida humana, são contra a eutanásia – bem-haja!

 

Artigo publicado no semanário Expresso a 18 de Março de 2021