MOVIMENTO ACÇÃO ÉTICA
O MAE entende que não há remédios técnicos para males éticos.

SER E TER

Por António Bagão Félix

A vida é uma confluência entre a liberdade de se ser, a necessidade de se ter, o impulso de se amar, a sensibilidade de se estar, responsabilidade de se dar, a exigência de se saber

A materialidade obsessiva do modo como se encara a vida, o utilitarismo eleito como a medida predominante da aparente felicidade, a primazia dos meios tecnológicos e digitais sobre o personalismo das relações humanas, o individualismo exacerbado do eu sempre em primeiro lugar, têm tido como consequência um afastamento nocivo entre dois verbos fundamentais da nossa existência, através dos quais nos vemos constantemente desafiados: o ser e o ter.

O que associamos ao verbo ter é uma condição necessária para a nossa vida e para preencher as exigências indispensáveis para a dignidade inalienável de todas as pessoas. Mas jamais é suficiente, se nos deixarmos conduzir alienadamente por tudo que o ter envolve ou induz.

O certo é que a ideia do ter é hoje dominante. Como disse o Papa Francisco, “com frequência, a gratuidade não é parte da vida quotidiana, na qual tudo pode ser comprado e vendido, onde tudo é calculado e medido”. Já Bento XVI, na sua Encíclica Caritas in Veritate, escreveu: “a vocação ao progresso impele os homens a realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais. Mas aqui levanta-se o problema: o que significa ser mais?" E acrescenta: “Fechado dentro da história, o progresso humano está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter”.

Sem darmos conta, a própria linguagem corrente tem evidenciado uma atracção pela hegemonia do ter, mesmo se com isso apenas nos estejamos a referir a diferentes expressões do nosso ser. Já não se diz “penso”, mas antes “tenho uma ideia”; substitui-se “quero” por “tenho vontade”. E, não raro, até nos damos conta de que, em vez de “sermos”, dizemos que “temos uma vida”. Situações que nos afligem em cada dia já não são do domínio do ser mas do ter. Por isso, dizemos “tenho um problema” o que significa que transformamos a percepção do problema em qualquer coisa que passamos a possuir: o próprio problema! E este, não raro, vinga-se passando de possuído a possuidor.

O próprio saber está agora submetido ao predomínio da extensão do ter (ou possuir) medido por saber mais pela rama e efemeridade do que pela compreensão do ser, ou seja, conhecer melhor e mais profundamente. Neste contexto, a inteligência artificial é um risco para a valoração ética própria da essência de se ser humano, que não cabe em algoritmos, mas antes radica na alma, na sensibilidade, em cada contexto da pessoa.

O ser ilumina-se por sinais interiores, enquanto o ter exibe sinais exteriores. Ao ser está associada a motivação. Ao ter, a ambição. Ao ser estão ligados o reconhecimento e o merecimento. Ao ter, o sucesso e o fracasso. Por isso, no ser se vive e no ter se ganha e se perde.

O ser congrega na diferença. O ter pode desagregar pela soma. O ser exige o ser melhor, como princípio. O ter exige o ter mais, como meta. O ser aperfeiçoa-se na partilha, no amor, na autenticidade, na doação. O ter consome-se no individualismo e no consumismo. Ao contrário do ter, o ser não precisa de euros para se avaliar.

O ser e o ter, porém, não são antagónicos ou incompatíveis. A convergência do ser e do ter é a base de ligação entre o imperativo de se ser e a possibilidade de se ter. O espaço privilegiado de harmonia entre o ser e o ter é a família. E um espaço decisivo de sintonia entre o ser e o ter pode e deve ser a empresa. Pela ética, pelo respeito, pela responsabilidade social.

E até (ou sobretudo) na religião, ser-se em fé é mais profundo e verdadeiro do que ter-se fé. Por isso, o deserto como símbolo da libertação e o Sermão da Montanha como renúncia à estrutura do ter. E a vida para além da morte, em que o ser se torna eterno e o ter se transforma em poeira.

6 de Junho de 2023

(texto escrito com a grafia anterior ao AO90)